quarta-feira, 14 de maio de 2008

Teatro

Vi-te num filme, encontrei-te nos bastidores.
Tu eras o raptor da peça, eu a tua cúmplice.
Tu metias-te em sarilhos sucessivamente, e eu livra-te deles.
Tu raptavas as meninas, eu cuidava delas.
Tu fazias o trabalho sujo, e eu adorava-te.
Convidei-te para uma saída, disseste que sim.
Ia levar-te a um restaurante perto dos estúdios, disseste que não tinhas muita fome, preferis-te comer-me na esquina.
Repetiram-se os jantares por longos meses, dizias serem reuniões de actores, ensaios fora de horas, trabalho de pesquisa.
Sabiam-te bem esses jantares pelas noites a dentro até de madruga. Sabiam-me a pouco a mim. O filme estava para vir a publico, ia estrear em poucas semanas. As gravações iam acabar, e eu ia deixar de te ver.
Numa dessas noites trazias um saco, "uma prenda para ti" disseste.
Fiquei admirada, mas não o demonstrei.
Tiras-te dele um cãozinho de pelúcia, como quem tira um coelho da cartola.
Disseste que era a minha cara, e que te lembras-te de mim assim que o viste.
Sacana, lá tenho olhos de cachorro pedinchão com uma trela ao pescoço.
Agradeci-te e disse que não era preciso. Foi então que tiras-te um caixinha do bolso.
Agora sim demonstrei-o, porque não esperava mesmo.
Era uma pulseira de contas e búzios, explicas-te que simbolizavam as conchas que o mar deixa na praia, que apesar de estar sempre a ir, também está sempre a voltar para as acariciar, e que eu era a tua concha, e tu o meu mar, e que por isso me querias pedir desculpa, porque o mar nunca é só das conchas, também é da praia e da areia.
Apeteceu-me bater-te, chorar, essa tua insistência em viver da ficção, e nunca partir para a realidade, em assumir o que és, e deixar-mos de ser, por momentos, o raptor e a cúmplice do cinema, para sermos eu e tu, a mulher e o homem, apaixonados.
Não me deste tempo de falar sequer. Calas-te com um beijo, indesejado por mim, forçado por ti. Foi ai que notei o porque daquilo tudo, estavas-te a despedir de mim, ias procurar outra concha, noutra praia, noutras areias.
Nessa noite não te deixei comer-me. Obriguei-te a levar-me a passear á beira mar, do nascer da lua ao por do sol. Obriguei-te a olhar para eles e disse-te:
- Sabes, a lua e o sol só se vêem-se de vez em quando, de muitos em muitos anos, e nem por isso deixam de se amar. É aqui no reflexo do mar, que se conseguem encontrar todos dias ao entardecer. Para mim tu não é o reflexo, és o sol. Venho cá todas as tardes ver-te partir, e todas as manhãs ver-te chegar. Se é assim que queres, assim vai ser.
Encosta-mo-nos um ao outro, e ficamos ali a conversar por horas infinitas, horas essas, que eu sabia serem uma ilusão, mais uma das tuas mascaras de teatro, mas deixei-me estar.


Vi-te em cena, na cena que devia ter sido feita para nós.
Vi-te com ela, sorriam nos vossos novos papeis.
Ninguém diria que vitima e raptor iriam ser amantes na serie seguinte.
Vi-te

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